segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sobre a Instrução relativa ao Summorum Pontificum

Salve Maria!
Diante das considerações de um padre anônimo, que subscreve seus textos como "Um padre da periferia do mundo", acerca de uma instrução reguladora do Motu Proprio Summorum Pontificum que a Comissão Pontifícia Ecclesia Dei estaria para publicar, pedi ao mesmo alguns esclarecimentos a respeito do status canônico da Bula Quo Primum Tempore que, a princípio, seria suficiente para dirimir toda e qualquer questão quanto à liberdade que se deve dar à Missa Tridentina. Seguem abaixo os comentários do padre, meu questionamento e sua embasada resposta.

Oremos pela Igreja e pelo Papa.

Leonardo Brum

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Comentário - Sobre a Instrução relativa ao Summorum Pontificum

Em relação à possível Instrução da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei acerca do Motu Proprio Summorum Pontificum, pensando com meus botões, fazia umas considerações que acho serem interessantes serem compartilhadas:
1. O Motu Proprio Summorum Pontificum é um documento papal de caráter legislativo. Nenhuma Instrução de nenhum dicastério pode ser contraditória com as disposições de um documento desta natureza.
2. O referido Motu Proprio, ademais, apresenta princípios definitivos: a assim chamada forma extraordinária não é uma concessão, mas um direito dos fiéis; além disso, o Papa declara que o Missal promulgado por João XXIII nunca foi ab-rogado.
3. Qualquer norma restritiva que for emanada pela Santa Sé deverá ter em conta estes princípios, não contradizendo o magistério papal, o que restringe muito as eventuais restrições que queiram impor ao uso pastoral do Motu Proprio.
4. Para que a normativa do Motu Proprio seja alterada seria necessário que o Papa escrevesse um documento da mesma natureza (ou outro Motu Próprio) ou de natureza superior (uma Bula, Constituição Apostólica e afins) cancelando o primeiro, o que não parece que acontecerá. No mínimo, o Papa teria de declarar pessoalmente a ab-rogação do Motu Proprio, o que igualmente parece improvável.
5. Portanto, caso um documento restritivo fosse emanado em contradição com os princípios legislativos estabelecidos pelo Papa no Motu Próprio e não cancelados pessoalmente por ele de algum modo, tais disposições não seriam mais que meras orientações pastorais, carentes de fundamentação jurídica. Todavia, dada a repercussão que os modernistas dariam a tal documento e ao uso que os mesmos fariam dele a despeito da liturgia tradicional, é importante que se manifeste à autoridade competente o desconforto com a notícia ventilada, no intuito de conter até mesmo tal possível iniciativa.

Um Padre da Periferia



Consulta - Não bastaria reafirmar a Bula Quo Primum Tempore ?

Reverendo Padre da Periferia, Salve Maria!

Tendo em vista suas considerações acerca do Direito Canônico, gostaria que o senhor nos explicasse qual a situação jurídica da Bula Quo Primum Tempore, de São Pio V. Ao menos ao que parece, ela também é um documento papal de caráter legislativo que contém princípios definitivos e que, até onde sei, também nunca foi ab-rogado (o que nem sei se é possível). No entanto, o Motu Proprio Ecclesia Dei passou por cima de suas disposições, mesmo sendo um documento de natureza inferior. O Motu Proprio Summorum Pontificum, por sua vez, revoga as disposições do Motu Proprio Ecclesia Dei, mas sem fazer qualquer menção à autoridade da antiga Bula, nem ao abuso de autoridade de João Paulo II ao restringir a Missa de Sempre, como se o Ecclesia Dei, apesar de agora revogado, tivesse sido perfeitamente legítimo à época de sua entrada em vigor.

Enfim, tenho a impressão de que o Summorum Pontificum foi o melhor que o Santo Padre pôde fazer diante das atuais circunstâncias, mas que, do ponto de vista estritamente jurídico, toda essa discussão atual sobre a liberdade que se deve dar à Missa de Sempre não tem o menor cabimento, bastando apenas que se reafirmasse o que determinou São Pio V em sua Bula.

Aguardando seu parecer e eventuais correções, se preciso for, despeço-me cordialmente.

Em Cristo,

Leonardo Brum


Resposta - Importante função do Motu Proprio: reafirmar que o Missal Gregoriano nunca foi ab-rogado

Caro Leonardo,

Salve Maria!

A tua pergunta me exigiria uma resposta assaz longa que eu, infelizmente, não posso entretanto oferecer. Contudo, penso que a questão possa ser abrangida nos seguintes pontos:

a. A Bula Quo Primum Tempore nunca foi revogada. Quanto à possibilidade de que possa sê-lo, a questão é complicada, pois, de um lado, o magistério supremo do Romano Pontífice pode dispor dos aspectos disciplinares do magistério de seus predecessores; e, de outro, no que possui de doutrinal (e aqui o critério, no que diz respeito à liturgia, é “lex orandi, lex credendi”) o magistério anterior não pode ser revogado. Deste modo, tratando-se do magistério dos papas, penso que o critério não é simplesmente documental (se é uma bula, uma constituição, etc.), mas a vontade eficaz do Pontífice, de qualquer modo manifestada claramente. No caso da Missa, o foco central está na relação entre a lei da oração e a lei da fé e, aqui, o discurso é bastante longo, pois nos remontamos à discussão sobre as fontes do dogma. Em suma, para esta análise se requer muito discernimento, estudo e, sobretudo, que se considere a autêntica mens do legislador.
b. No entanto, o Papa Paulo VI, com a Constituição Apostólica Missale Romanum, entendia promulgar um Novo Missal, com um Novus Ordo. O problema é que, ao fazê-lo, não deixou textualmente clara a intenção de suprimir o antigo e isto por motivos não declarados (por exemplo, um dos virtuais motivos poderia ser o de salvaguardar o direito a que os sacerdotes anciãos continuassem, então, a celebrar segundo o usus antiquor). Deste modo, a Bula de S. Pio V continuou invicta juridicamente.
c. Pastoralmente, porém, foi completamente ignorado este status da Bula Quo Primum Tempore, de modo que o antigo Ordo foi integralmente substituído pelo Novo e, ademais, as restrições para que o antigo pudesse ser celebrado foram totais, de modo que os executores da reforma litúrgica concluíram simplesmente que a Bula que promulgava o Missal antigo fora pelo Novo suprimida.
d. Esta conclusão precipitada e agravada pela prática pastoral posterior foi de algum modo corroborada pelos referidos documentos de João Paulo II, que regulavam limites para a celebração da liturgia tradicional, deixando espaço para alguma liberdade, mas sempre moderada pela autoridade dos Ordinários locais. Neste caso, a corroboração do Papa dá à interpretação restritiva de então o peso do magistério pontifício, naturalmente ainda equívoco.
e. Com o Motu Proprio Summorum Pontificum a confusão jurídica foi solucionada, pois o Papa Bento XVI, em sua plena autoridade de legislador universal sobre a Igreja, afirmou que o Missal anterior nunca foi ab-rogado e que a celebração da liturgia tradicional é plenamente lícita. Ademais, me parece muito interessante que o status de ordinário dado ao Novus Ordo (designado pelo Papa como “forma ordinária”) seja ali explicado por ele como devido a dois fatores: os novos livros foram aprovados por Paulo VI e acolhidos pela Igreja, em outras palavras, o Papa não fala da promulgação de uma verdadeira liturgia nova, mas de uma nova versão simplesmente aprovada e acolhida pela quase totalidade da Igreja. Isto não me parece despropositado, sobretudo pensando na possibilidade de que a reforma da reforma continue. Deste modo, o Papa Bento XVI, embora não mencione explicitamente a Bula Quo Primum Tempore e não alegue a sua validade jurídica, a pressupõe, pois afirma que o Missal anterior, uma volta promulgado (pela dita Bula, evidentemente) nunca foi ab-rogado (o que coloca todas as conclusões a despeito disso sob o status de abuso jurídico, mesmo que isto não seja explicitamente declarado nem tenha sido admitido ser a intenção específica de seus mentores).
f. Deste modo, embora o Motu Proprio Summorum Pontificum reconheça ainda uma maior universalidade da forma ordinária (sempre baseada na proposta de Paulo VI e no consenso da Igreja), reconhece igualmente uma estabilidade no uso da forma extraordinária, que continua sendo lícita e sempre acessível ao sacerdote, aos fiéis que requeiram a sua celebração e à admissão daqueles que o peçam para o uso privado. Ou seja, pastoralmente, as restrições práticas e as interpretações indevidas foram dirimidas.
g. Cito a tua afirmação: «toda essa discussão atual sobre a liberdade que se deve dar à Missa de Sempre não tem o menor cabimento, bastando apenas que se reafirmasse o que determinou São Pio V em sua Bula». De um lado, é exatamente isto que o Papa tem feito: pressupor a Bula de S. Pio V sem a ela referir-se explicitamente, para não dar a impressão de prescindir totalmente do Concílio Vaticano II (uma vez ser ele favorável a uma hermenêutica da continuidade relativamente a este Concílio, por ele considerado plenamente válido); de outro, me parece que toda esta documentação seja necessária por dois motivos: primeiro, a intenção de Paulo VI (o legislador universal de então, pois não admitimos o sedevacantismo teórico nem prático) era a promulgação de um novo missal que reformasse o anterior, ou seja, que lhe substituísse e fosse universalmente acolhido por toda a Igreja, embora não tenha declarado se o antigo pudesse ser integralmente usado, o que foi esclarecido apenas na normativa do Summorum Pontificum; segundo, porque, embora o Missal anterior não tenha sido ab-rogado, a imprecisão legislativa e a prática posterior, corroborada pelo magistério pontifício, davam espaço para que se pensasse deste modo e, por isso, uma intervenção do magistério papal a respeito seria necessária para dirimir a questão, sempre tendo presente que o Papa tem autoridade suprema inclusive para mudá-la.
h. O problema da polêmica sobre a futura Instrução da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei reside na idéia de que esta pudesse restringir a legislação papal, o que, pelo próprio enunciado da possibilidade, é evidentemente ilógico. Contudo, dada a confusão eclesial presente, a possibilidade de que o ilógico venha à existência não é uma mera conjectura irrealista... Deste modo, considero que seja válido o rechaço a esta idéia maligna pelas próprias conseqüências negativas que poderia acarretar (como a ventilação abjeta que dela fariam os modernistas para fustigar a Missa de sempre).
i. Um Pontifício Conselho, órgão secundário da Cúria Romana, não tem autoridade de restringir o Papa; nem me parece que seria intenção de seus membros fazê-lo, pois contradiriam suas posições de sempre; nem tampouco isto conviria politicamente para os progressos do diálogo com a FSSPX, no qual o Papa está pessoalmente empenhado (pois, senão, não teria lógica que se submetesse às críticas ferozes que recebeu do episcopado mundial e da opinião pública).
j. Ademais, a finalidade de uma Instrução é esclarecer pontos dúbios sobre alguma doutrina ou disciplina concreta, de acordo com a mente do legislador. Por isso, não deve apresentar novidades relativamente ao documento a que se refere, mas apenas esclarecê-lo no que há de obscuro ou pouco preciso.
k. Contudo, em si mesmas, estas restrições, caso se emitissem, seriam apenas indicações pastorais, visto que apenas o Papa teria poder de fazê-lo eficazmente, podendo fazer uso deste como bem entendesse, manifestando como quisesse a sua intenção. Neste caso, uma junção final do texto indicando a ciência do Papa a respeito (como: “o Santo Padre viu e aprovou estas determinações” ou afins) daria a esta Instrução sua incardinação ao Magistério do Romano Pontífice.

Deus te abençoe.
Cordiais saudações,
Padre de Periferia.

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